
Por Renato Pereira
Esta matéria busca analisar os principais pontos que tornam o trânsito no Brasil um dos piores do mundo. Não, não dá para ser um texto curtinho “a lá internet”, porque os problemas são muitos e, se não é para apontá-los corretamente, não tem sentido nenhuma matéria sobre o tema neste planeta.
É difícil dizer que o trânsito no Brasil vai de mal a pior, porquê na realidade nunca foi bom o suficiente para que pudesse piorar. Trata-se de uma questão quase cultural ser um péssimo motorista por ser um péssimo cidadão. Como a educação e a cultura vêm de casa, é de casa que vem toda uma gama de maus exemplos e atitudes que, junto a incompreensíveis atitudes e ações erradas de quem deveria fazer tudo certo, ajudam a transformar o trânsito brasileiro em um inferno na Terra.
Alia-se a esse fator o total despreparo com que as auto-escolas entregam às ruas centenas de novos-habilitados diariamente pelo país afora. Se o novo motorista não tem conceito de civilidade, bom-senso, inteligência emocional e auto-controle, somado à absoluta insignificância do que aprende na prática numa auto-escola, o que se pode esperar desse condutor?
Mas tudo pode piorar com os engenheiros de tráfego das cidades, que conseguem travar o trânsito aumentando absurdamente os níveis de poluição e consumo de combustível, para além dos anacrônicos geradores de despesas mecânicas, os quebra-molas, em diversos pontos absurdos, causando mais congestionamentos e, via de regra, inúmeros acidentes.
Então, os problemas do trânsito no Brasil não são motivados por um fator único, e sim pela junção de diversos agentes que, se corrigidos agora, demorarão anos para serem positivamente percebidos, já que o estrago vem sendo feito desde os mais remotos tempos da condução de automóveis no país. Mas tem jeito, e antes tarde do que nunca pode-se buscar meios para que esta situação caótica seja revertida. Demora, mas tudo tem de ter um início.
Em primeiro lugar vem a formação do caráter do condutor. Ninguém nasce contraventor. Mas se torna. Essa ideologia da divisão sócio-econômica-racial da população faz com que se acredite que se o ”rico ou branco” comete infrações – estaciona em fila dupla, dirige embriagado, usa as ruas como pistas de corridas etc – nada vai acontecer, enquanto se o “pobre ou preto” fizer qualquer coisa vai preso, o leva ambos a fazer para desafiar o sistema e a sociedade. Porém essa doutrina, dos pseudo-intocáveis aos rebelados, são originadas dentro de suas casas – a criança espelha-se em seus pais, e depois em seu meio até que, quando cresce, carrega junto a sensação de indestrutibilidade, impunidade ou afronta que aprendeu em casa – se esparramam por seus bairros e cidades e está feita a receita do caos. Essa é a parte mais difícil, corrigir esta mentalidade que deveria ser revertida nas escolas, mas que é onde é mais potencializada. A sugestão? Disciplina de Civilidade, com todos os seus conceitos e sem ideologias, voltada (porém não somente) ao trânsito na grade escolar do Ensino Infantil ao Médio.
Em segundo lugar vêm as auto-escolas. Haverá denegação sobre o que aqui será exposto? Certamente, e essa é a idéia, mas terão de mostrar o contrário. O mundo progrediu, as cidades cresceram, o volume de tráfego aumentou, os automóveis evoluíram, enfim, tudo avançou menos o aprendizado na auto-escola. Que continua “ensinando”, por valores inconcebíveis, o significado das placas de trânsito, a “fazer baliza” com um Fiat Mobi numa vaga para rodo-trem, a se arrastar nas ruas e avenidas, atrapalhando o fluxo nas aulas práticas, e nada mais. O condutor recém-habilitado não tem a menor noção de direção real em tráfego intenso e, principalmente, rodoviário. Não tem preparo psicológico e emocional para situações de risco, não sabe antecipar racionalmente e se prevenir ou se defender em momentos de perigo. Não entende o funcionamento do veículo, sua distribuição de peso, sua dinâmica de frenagem e aceleração, a avaliar distância e velocidade, a detectar pontos de fuga e ter noção do “mundo” ao seu redor. Tem pessoas que procuram se habilitar por que querem e gostam, tem pessoas que o fazem só por que precisam e tem pessoas que fazem por fazer. Isso não importa, o conteúdo tem de ser igual para todos. A sugestão? O sistema norte-americano é muito inteligente e eficaz, com o indivíduo recebendo orientação familiar e colegial corretas sobre trânsito, respeito, direitos e deveres, praticando desde cedo e se habilitando com a certeza de que será punido por suas infrações, bem como graduar de forma crescente a categoria da habilitação, não permitindo que um recém-habilitado conduza veículos com potência elevada durante X período, quando uma nova avaliação o credenciará ou não para evoluir no tipo de veículo que poderá conduzir.
Em terceiro lugar vem os burocratas da engenharia de trânsito. Não se sabe em que planeta eles vivem, mas é difícil acreditar que se deslocam em veículos terrestres pelas cidades. Se o fizessem, veriam o descalabro de suas definições de fluidez e inteligência na mobilidade urbana. Semáforos com sincronismo nulo, vias transversais de mão única no mesmo sentido em sequência, conversão à esquerda em vias expressas, lombadas sem o menor rigor técnico, velocidades máximas ridiculamente baixas em avenidas, radares fábricas de multas, é impossível enumerar todas as insanidades aplicadas que, simplesmente, acabam com qualquer possibilidade de um trânsito fluido, elevando o número de acidentes, da poluição e do consumo de combustível. A sugestão?Uma vez que o Brasil imita tudo de outros países, que imite então os controles de trânsito de locais como o Japão, a Alemanha, os Estados Unidos, a Suíça etc, que tem infra-estrutura e inteligência operando conjuntamente.
Em quarto lugar vem a infra-estrutura. Por motivos óbvios, o sistema de transporte predominante no Brasil é o modal rodoviário. Em um país com dimensões continentais, que faz fronteira terrestre com –salvo pequenas exceções – os piores países da América Latina, é decepcionante saber que sua infra-estrutura em estradas e fiscalizações é tão precária que chega a ser medieval, semelhante a países subdesenvolvidos em guerra. Rodovias importantíssimas como as BR 101, 116, 153, 163, 174, 230 e 364, por exemplo, permanecem com duas faixas de rolagem para cada sentido em quase todas as suas extensões, com trechos de estrangulamento – impensáveis em pleno século 21 – como o acesso a Navegantes, em Santa Cataria, por exemplo. Essas rodovias ligam o país de norte à sul, de leste à oeste e todos os demais pontos cardeais e são péssimas em todos os quesitos mínimos de fluidez, superfície e segurança. Sugestão? Desestatizar e entregar o controle de todas as rodovias à iniciativa privada, exigindo ampliações, alargamentos e criação de vias alternativas em “gargalos”.
Em quinto lugar vem a frota circulante. O Brasil é um país pobre. Não deveria ser, mas é. Logo, é um país com uma das maiores frotas circulantes de veículos velhos, com mais de 12 anos de uso (em 2024 foram comercializadas 14,3 milhões de unidades nessa faixa de idade contra 2,63 milhões de veículos zero km) e manutenção variando pouco entre precária e péssima. No Japão e Alemanha os carros velhos em circulação tem no máximo 9 anos, enquanto no Reino Unido este número cai para 7 anos, porém com uma diferença visceral: nestes países esses carros “velhos” estão em perfeita condição de uso para todos os fins, porque as legislações são absurdamente exigentes e, se o carro não cumprir as regras vai para a prensa e a multa é enorme. Sugestão? Endurecer o rigor das vistorias técnicas e eliminar, de verdade dessa vez, os veículos – automóveis, utilitários, caminhões e ônibus – sem condições de rodagem, independente do ano de fabricação.
Em sexto lugar vem a fiscalização. De nada adianta aplicar toda e qualquer idéia positiva e funcional se a fiscalização for precária. E quem pode – e deve – exercer o papel fiscalizador são as Polícias. Que hoje até tentam, mas quase sem sucesso, aplicar o que as próprias leis de trânsito já determinam, mas vão pelo ralo da burocracia e de novas leis que são espécies de leis-anti-leis, beneficiando amplamente os infratores e desestimulando o trabalho policial. Não obstante, as Polícias Militar e Rodoviária Federal sofrem com a carência de equipamentos modernos e eficientes não só para a fiscalização do tráfego, de veículos e condutores, como também com seus postos fronteiriços não contando com equipamentos básicos, para além das atuações de vigilância estarem cada vez mais ideologicamente limitadas legalmente. As Polícias prendem ou apreendem, alguém vai lá e solta com argumentos que ultrapassam o ridículo. Sugestão? Capacitar policiais militares e federais para fiscalizações e “blitz” de trânsito, afim de coibir condutores infratores – todo mundo sabe onde ficam os “bares e agitos” de suas cidades, e é de lá que saem os motoristas alcoolizados ou sob efeitos de entorpecentes, por exemplo – entre outras infrações; equipar a PRF com equipamentos modernos (raio-x nas bases, entre outros) para detectar e agilizar a apreensão de drogas e contrabandos), interligar sistemas entre as Polícias para detectar veículos roubados e criminosos evadidos, enfim, aplicar a Inteligência, enterrar a ideologia de que o errado é que esta certo e deixar que as Polícias cumpram seu papel de fiscalização e garantia da segurança.
Enfim, é um trabalho árduo, que vai do “iniciante ao profissional”, em uma analogia moderninha onde cada fator apresentado é recheado de outros problemas – a maioria simples, basta querer resolver – que se unem aos outros adiante e dificultam os primeiros passos. Sabemos que 90% do que foi dito aqui é de conhecimento da ampla maioria da população, mas que ignora solenemente as regras e o bom senso justamente pelos motivos apresentados. Não é preciso que se diga o que é certo ou errado, o que é bom ou mal e, excetuando-se os psicopatas, todo mundo sabe onde estão as linhas que separam os dois caminhos. Então, fica a certeza de que sim, basta querer – por bem ou pela lei – sair do caos das piores estatísticas para atingir a civilidade que o sucesso exige.