Fotos: Marcus Lauria e Divulgação
É fato que a sociedade brasileira atualmente passa por um quadro severo de crise de representação em todos os setores (política, cultura e artes, economia, religião). Reflexo disso pode ser encontrado na estima baixa, no discurso resignado e na falta de orientação ou mesmo de esperança de dias melhores. O otimismo, predicado comumente tão associado aos brasileiros de norte a sul, hoje é uma característica vista apenas em grupos não afetados pela crise sistêmica e/ou que surgiram como “salvadores da pátria”, agentes inovadores. São eles: mídias, startups, agências de marketing e publicidade, conglomerados empresariais, agroindústria etc. E as montadoras, como se comportam diante desse cenário? Como se adaptam à realidade do mercado em meio a tantos questionamentos sobre a sua existência e impactos negativos nas cidades (poluição, congestionamento, violência no trânsito, mobilidade nuclearizada, micropatologias vistas entre os motoristas e amantes do mundo automobilístico).
As montadoras de automóveis sentiram um bocado a oscilação do mercado brasileiro. Reflexo disso está nas marcas que, entre 2015 e 2017, desistiram de implantar fábrica no país (Foton), abandonaram o projeto no meio do caminho (JAC Motors), venderam seus ativos e operações para outras empresas (Chery) ou tiveram que reprogramar drasticamente a produção (Mitsubishi, Suzuki, Nissan). Para as marcas plenamente “nacionalizadas” (Fiat, Volkswagen, Ford, Renault), restaram-nas se adequar às mudanças no comportamento e consumo da classe média brasileira. Conquistar o cliente pelo apelo diferencial do produto. Só que as marcas nacionalizadas têm adotado uma estratégia um tanto paradoxal para quem deseja, digamos, entender e ganhar o gosto do brasileiro pela sua “brasilidade”. A estratégia consiste em explorar intensamente a origem nacional, isto é, as peculiaridades geográfica e cultural do território sede da marca.
No livro Cruzando culturas sem ser atropelado: Gestão transcultural para um mundo globalizado, de Fernando Lanzer[1], o autor alerta para as diferenças no padrão de produção de automóveis nos países de economia avançada, mesmo quando se fala tanto de globalização econômica e homogeneização cultural das sociedades ocidentais. Segue um trecho emblemático do seu livro:
“É interessante notar como a cultura dos principais países produtores influenciaram as características dos carros produzidos, de acordo com a nacionalidade das marcas.
Os carros americanos refletem os valores da cultura americana: potência de motor, tamanho (quanto maior, melhor), o destaque individual (aparecer, se destacar, é bom e é louvável). Os americanos usam a expressão muscle cars (carros musculosos) para descrever seus modelos e marcas famosas, com motores possantes, como o Ford Mustang, Chevy, Camaro, o Dodge Charger. Também são tipicamente americanos os “SUVs” de tamanho grande, que esbanjam potência e volume. Os veículos americanos não buscam ser discretos, econômicos, seguros e funcionais.
Já os automóveis escandinavos, principalmente da marca sueca Volvo, buscaram se destacar pela segurança, antes de mais nada. Esse aspecto estava claramente consistente com os valores de culturas com baixa OPD, mais voltadas para o cuidado com os outros e para a qualidade de vida. Os carros escandinavos também não se destacam dos demais em termos de aparência: o objetivo não é aparecer e sim, “se nivelar”. Tudo coerente com os valores das culturas escandinavas.
Os carros franceses das marcas Renault, Citröen e Peugeot refletem os valores da sua cultura: sobressaem não pela potência, nem pelo tamanho, mas pela estética e pelo conforto ao dirigir. Buscam uma elegância discreta, uma beleza moderna. Procuram ser diferentes dos carros de outras nacionalidades.
Os carros japoneses se tornaram sucesso mundial graças à qualidade, em termos de confiabilidade, regularidade, funcionalidade e economia. A principal característica diferencial da cultura japonesa diz respeito ao CDI e as características das marcas japonesas refletem esse valor cultural.
De forma semelhante, as marcas alemãs Mercedes Benz, BMW, Audi e Porsche, (no segmento luxo) e a marca Volkswagen ( no segmento popular) ganharam espaço mundial pela qualidade da engenharia e da fabricação alemãs. Os carros alemães são menores do que os americanos, não tão belos como os franceses. Seus principais concorrentes, em termos de semelhança, são os japoneses, que procuram se diferenciar por um preço menor.
A qualidade dos automóveis alemães, em termos de confiabilidade, durabilidade e resistência, ainda é percebida em todo o mundo como sendo o padrão de excelência, que as outras marcas (inclusive as japonesas) buscam atingir. As marcas japonesas, pode-se argumentar, tem qualidade equivalente à alemã e por um preço inferior. O fato é que a imagem das marcas alemãs, principalmente no segmento de luxo, ainda é superior às imagens das marcas japonesas (LANZER, 2013).”
[1] Link: https://goo.gl/XL7HhoNo cenário brasileiro, os casos são variados e apresentam em comum a luta para manter-se no imaginário da classe média. Reflexo disso está nos ranking anuais de vendas (market share) que, mesmo com as oscilações, apresenta as mesmas empresas há décadas. Em analogia às “sete irmãs do petróleo” da década de 70, poderíamos chamar por aqui de “as sete irmãs do automóvel”: Chevrolet, Volkswagen, Fiat, Ford, Renault, Toyota e Hyundai.
A Fiat, por exemplo, vem se reestruturando desde 2016/2017 de várias formas. O resultado foi o enxugamento do portfólio, o investimento em um arrojado marketing de cunho jovem/cool, e, por fim, o lançamento de modelos (Mobi, Toro e Argo) que buscam traduzir contemporaneamente o design italiano. Personalidade, inspiração e sofisticação são atributos dos automóveis italianos pelos quais os italianos muito se orgulham e reivindicam exclusividade. Não à toa, mesmo ausentes no mercado brasileiro, Alfa Romeo, Maserati, Lamborghini (atualmente, mesmo pertencendo ao Grupo Volkswagen, manteve-se a proposta original de design e a linha de produção em Sant’Agata Bolognese, Modena) e, é claro, Ferrari, possuem fãs e admiradores por todo o canto e sempre são citadas quando o assunto é luxo e esportividade.
Apesar de estar defasado e prestes a sair da linha produção, propaganda em torno do Fiat Palio busca ressaltar a italianidade do veículo:
Já com o Argo, a história se repete:
No lado das marcas alemãs, o destaque fica para a sobriedade o refino, robustez, segurança, em suma, a tecnologia dos seus carros. Para as marcas de luxo (Audi, Porsche, Mercedes-Benz, BMW), o diferencial está em tudo mais o preço que só os milionários ou ganhadores de loteria podem pagar. À Volkswagen, coube o papel de popularizar e tornar a tecnologia alemã um padrão a ser copiado inclusive pelos japoneses e coreanos, outros exímios artífices na arte de produzir carros. Para o departamento de marketing da matriz e da filial brasileira, não é preciso destacar a palavra alemão nas peças publicitárias. Basta destacar as virtudes a partir da crítica especializada. É ela que ratificará o que todos já sabem. É o caso do Volkswagen Polo, que retornou em grande estilo no fim de 2017:
Como falei dos japoneses, é importante ressaltar que eles são parecidos com os alemães no que concerne a segurança, padrão de qualidade e robustez dos carros. Muitas pessoas podem torcer o nariz quando o assunto é design ou mesmo potência do motor, mas quando se fala em design ou confiança na tecnologia e materiais nipônicos, ninguém discorda: os carros japoneses realmente superam as expectativas do consumidor de perfil conservador. O curioso é que pesquisando no site das montadoras ou redes sociais, há pouco material das montadoras japonesas que aponte de aberta e visualmente midiática para essa questão. Talvez para a mentalidade japonesa, basta olhar para o veículo e pronto, sua sensibilidade será tocada.
Tal atitude também é comum em relação ao patrimônio cultural deles. Não hesitam em admirar, valorizar e defender as suas tradições, memórias e legado material. Por isso, historiadores, arqueólogos e mesmo a Unesco alegam que os japoneses adotam poucos instrumentos legais de proteção do patrimônio. Eles não precisam dos mecanismos formais criados pelo Ocidente, pois garantem por si mesmos a valorização e defesa do patrimônio. A atitude deles já basta!
Já as marcas francesas (Renault, Citroën e Peugeot), apresentam dificuldades para se tornarem referência no gosto do brasileiro e da crítica especializada. Mesmo a Renault que, com as últimas reestilizações dos seus carros populares e dois lançamentos bem sucedidos (Captur e Kwid), conseguiu se firmar entre as sete irmãs do automóvel, vê-se claramente que ela não consta como referência nas pesquisas de opinião e nos sites de avaliação. Todavia, segue firme a estratégia da Renault para exercer a sua cidadania francesa em terras brasileiras. Na peça de divulgação do novo Captur, a Renault não escolheu o Museu de Arte Contemporânea de Niterói à toa: quis-se ressaltar a modernidade e elegância tradicionalmente atreladas à cultura francesa:
Para fechar com os exemplos (são tantos que não cabe neste curto artigo), cito o caso da Chery que, de forma sagaz e oportuna, tente conquistar o público admirador do design italiano a partir de um marketing pesado e uma sutil reestilização dos seus carros populares (QQ e Celer). E ainda por cima, resgata elementos da cultura chinesa (Yin-yang, alfa e ômega, cinco elementos da Terra, equilíbrio confuciano) para criar uma salada que, na prática, não atraiu o público. Resultado: poucas vendas e a venda da filial para o grupo Caoa (agora, Caoa-Chery).
Um indício do “fracasso” talvez esteja no despreparo do brasileiro em geral para esse tipo de narrativa. O problema é nosso, não da Chery!
Não é de hoje (e não somente no Brasil) que as marcas automobilísticas recorrem a estratégias identitárias e visuais, quase pitorescas, para conquistar novos mercados e consumidores. Todas as empresas são cientes de que sua marca tem um papel vital para a conquista de mercado. Um símbolo, para ser forte, necessita de ser bem lapidado, polido e colocado de forma inteligente na vitrine para o produto ser desejado por todos. Em se tratando de empresas e, mais ainda, de montadoras, a identidade visual é condição indispensável para a sobrevivência destas no competitivo mercado contemporâneo. Sem uma identidade visual forte e consolidada, nenhuma marca consegue se inserir plenamente no mercado, tampouco fidelizar clientes e criar aquele ambiente favorável na qual até o Poder público se ajoelha perante seus pés para conseguir status e alguns impostos e empregos a mais…
** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do CarPoint News.