Fui transportado para hospitais diferentes em “modernas” vans IVECO Daily e Mercedes-Benz Sprinter. Claro que foram duas curtas viagens pela região urbana da capital paulista, mas que me permitiram recordar das sofridas viagens, ainda no início do desenvolvimento da indústria automobilística brasileira, em jardineiras, carros de boi e até de ambulâncias adaptadas em furgõezinhos Fiat. Será que houve sobrevivente desse tipo de transporte sobre o qual a própria Fiat fez propaganda identificando-o como o menor caminhão do mundo transformado em ambulância?
Não sofri e me incomodei tanto nem quando testei, há cerca de 50 anos um dos primeiros veículos militares desenvolvidos pela extinta Engesa para o exército brasileiro.
Os veículos, como uma ambulância, precisam ser projetados com características próprias e não improvisados ou adaptados. Se já existem veículos autônomos ou semiautônomos que acionam voluntariamente o sistema de freios antes de um obstáculo, identificam veículos, ciclistas e pedestres à sua frente, por que a engenharia automotiva não prevê o projeto de ambulâncias para evitar ao menos custosas improvisações?
Fui consultar um especialista em especificações da indústria automobilística que confirmou que as ambulâncias brasileiras são, sim, adaptações de vans utilizadas para o transporte de mercadorias gerais. Naturalmente, sem a preocupação com melhorias ou desenvolvimento adequado para o transporte de pacientes ou feridos como sistema de suspensão pneumática, para absorver as irregularidades do piso, buracos, sarjetas e lombadas, que caracterizam as ruas brasileiras.
Também explicou que, para atender à minha consulta, realizou pesquisa com entidades reguladoras oficiais, nacionais e internacionais, e só encontrou normas relativas a conforto de rodagem exigido para ambulâncias em uma delas.
Um instituto chinês aponta ser importante, no mínimo, a adoção de suspensão pneumática para amenizar a energia em saltos, vibrações do veículo ao passar por irregularidades, inclinações e otimizar o conforto dos pacientes, a estabilidade do veículo em curvas e o manuseio dos equipamentos das ambulâncias.
Com essa suspensão, os veículos podem proporcionar conforto ao paciente deitado, sem provocar náuseas, aumentar o desconforto e, até ampliar a pressão do sangue na cabeça, comprometendo ainda mais o seu estado de saúde, causando uma lesão secundária.
Esse profissional, que na indústria sempre cuidou dos procedimentos para o desenvolvimento de diferentes veículos, comentou que a suspensão a ar seria um benefício importante, mas desconhece a existência de um CBO7 (Código Brasileiro Automotor) que exija especificações rigorosas para a construção de ambulâncias.
Também me lembrou que, assim como as fábricas de veículos, as prefeituras deveriam liderar as ações para cuidar das vias públicas, o que seria um ato de respeito a pacientes e vítimas de acidentes nos sofridos traslados a que são obrigados a enfrentar em momentos de sofrimento em busca de socorros médicos.
Para alguém, como eu, que teve a sorte, alegria de conviver e de ganhar experiência com os senhores Paulo Bellini, Valter Gomes Pinto e José Antonio Martins, criadores da Marcopolo e que nunca esconderam que os primeiros ônibus que produziram tiveram como base mecânica os caminhões da época e até contavam histórias sobre as dificuldades que enfrentaram para atender as necessidades dos clientes que adquiriram veículos para o transporte de passageiros, pelas áreas metropolitanas e, também, ligando cidades mais distantes.
Com a experiência adquirida e o respeito que sempre dedicaram ao transporte público criaram uma geração de profissionais especializados em produzir ônibus classificados entre os melhores do mundo.
Sempre imaginei que ser transportado por ambulância era uma espécie de voo sobre uma nuvem porque os pacientes, feridos ou não, necessitam de um transporte confortável e rápido para conseguir amenizar o mal que os afetam naqueles sofridos momentos. E, ao abordar ambulâncias lembro, ainda em minha infância, das luxuosas Buicks importadas dos Estados Unidos que cumpriram essa missão em São Paulo.
Um colega do tipo sabe-tudo, filho de um político, um dia comentou, ao ver uma ambulância Buick passar pela frente da escola, que, quando ela corria, flutuava a cerca de 5 centímetros do chão, o que nunca consegui ver. E, naturalmente, sempre duvidei.
Esses dois test-drives em ambulâncias me lembraram as divertidas, mas sofridas viagens em companhia de meu pai para visitar parentes que residiam no interior do Estado. Ao chegar às estações centrais das regiões em que os parentes moravam, restavam ainda horas de viagem para chegar ao destino final, que eram cumpridas em jardineiras por estradas de terra (tenho certeza de que os mais jovens nunca viram uma jardineira).
As jardineiras eram veículos para o transporte de pessoas, igualmente pouco maior que a Besta, Daily ou Sprinter, construídas sobre chassi de caminhões leves, sem proteção lateral e nenhum nível de conforto. Nas fazendas de meus tios, conheci os carros de boi, utilizados para o transporte de produtos, veículos sem suspensão que, ao passarem pelas irregularidades do piso, faziam até caírem as obturações dos dentes. E eu, como qualquer criança, curtia as emoções dessas aventuras.
Ao chegar à idade adulta conhecemos Fernando Collor de Mello, presidente que acusou a indústria automobilística brasileira de produzir carroças em lugar de automóveis. Fácil para quem, como ele, tem dinheiro para comprar Ferraris, Lamborghinis e outros modernos automóveis.
Entre os veículos que passaram a ingressar no mercado brasileiro sob a influência de Collor de Mello, chegaram também vans chinesas, entre as quais, a própria Besta, que aqui algumas unidades foram improvisadas em ambulâncias, uma das quais utilizadas para o transporte de minha mulher, intoxicada por alimento estragado e servido em voo entre São Paulo e Belo Horizonte.
Nesse dia, achei absurda a legislação provocada por Collor de Mello de permitir a importação de um veículo de carga como a Besta, transformado em ambulância. Minha mulher sofreu muito no transporte colocado à disposição para chegar a um hospital das proximidades.
Reconheço que os hospitais melhoraram muito os cuidados, com orientações a seus funcionários socorristas e as empresas de transporte de pacientes os aperfeiçoamentos internos dos veículos, com sistemas e equipamentos avançados, macas removíveis e desmontáveis e profissionais cuidadosos para tranquilizar e amenizar o sofrimento dos pacientes.
Como eu e minha mulher, milhares de pessoas sofreram e muito maior contingente irá passar pelo mesmo sacrifício, pela falta de um transporte adequado. Ou seja: continuaremos a realizar o test-drive que ninguém merece?